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Eduardo Costley-white e o sentimento de Moçambique

Eduardo Costley-white


Conheci o poeta Eduardo Costley-white em São Paulo, se não me engano no ano de 1987, durante o I Encontro Internacional de Escritores Negros, governo Franco Montoro. Graças a esse acontecimento que não nos entediou de modo nenhum, mantivemos um contato diário ao longo de quase uma semana levando a cabo uma divertida troca de ideias e de poemas. De imediato me identifiquei com Eduardo e com Marcelo Panguana (outro grande escritor moçambicano da delegação), principalmente pelo fato de sermos da mesma geração. Hoje vejo nisso a razão pela qual não encontrei a mesma satisfação no contato com a delegação angolana que, não obstante ser composta por alguns poetas importantes (Manuel Rui e Ruy Duarte de Carvalho, por exemplo), era formada, grosso modo, por um pessoal de uma geração uns vinte anos mais velha do que a nossa.
Como normalmente acontece, depois de encontros entusiasmantes e cheios de expectativas, o repentino afastamento é engolido pelo contínuo da vida prática e o tênue laço estabelecido não resiste. Prometemos trocar cartas, mas o desejo não vingou. Os tempos eram de pré-internet. A troca de correspondência com os países africanos não era algo muito fácil. Não sei bem onde entra a ficção aqui, mas acho que mandei uma ou duas missivas ao Eduardo, no entanto, até hoje também não posso afirmar com certeza se alguma delas chegou ao destinatário. Enfim, agora, vinte a seis anos depois, e graças à internet e, para o bem ou para o mal, às redes sociais (aqui para o bem), reencontro Eduardo Costley-white.
Eduardo Costley-white é um poeta muito importante em seu país, uma rápida pesquisa no mecanismo de busca do Google, por exemplo, comprovará isso. Não tenho paciência para fazer esse resumo dos símbolos consagradores com que o meio reconhece as qualidades do artista, sei apenas que Eduardo Costley-white os merece. O que importa é sua poesia. E é nesse ponto que gostaria de dizer uma ou duas palavras à guisa de breve apresentação aos textos aqui publicados.
O que temos aqui são poemas em prosa, mas não são poemas de cepa galáctica, não se trata da já rotineira proesia que poetas entediados com o verso frouxo, formados na academia, gostam de praticar na presunção de dar uma lição na prosa. Esses textos de Eduardo Costley-white falam na pauta da crônica, quer dizer, o poeta se deixa aparentar com o cronista (para o termo convoco aqui tanto o sentido mais alto quanto o sentido mais chão), cronista de um epos em que flagramos o movimento conflituoso e indecidível do subjetivo ao objetivo. Os poemas em prosa de Costley-white narram a complexa interação do poeta com o meio social, falam desde a crista de um tempo preciso, de onde se bifurcam o passado e o futuro da experiência moçambicana. Falam tanto da necessidade quanto da impotência do fazer poético, da pertinência e da impertinência do poeta. Eduardo Costley-white incorpora à sua linguagem a medida adequada da estratégia da autoinvestigação drummondiana – o poema do ego scriptor – que é sempre coextensiva à crítica ao estado de coisas de um tempo e de um lugar. Nesses poemas em prosa (crônicas de uma confissão em processo) podemos ler, ainda que parcialmente, uma espécie de sentimento de Moçambique. Agora, cedo a vez ao apetite do leitor. E segue aquele abraço ao meu caro Eduardo Costley-white. [Ronald Augusto]

Eduardo Costley-white[1]: autorretrato

Poeta a que aspiro a ser
Dele se arrepende.
Pobre, magro,
Este homem 
Cunhado na pele.

Nos bolsos, nada.
Nem um papel com versos,
Nem em branco
Para que os possa escrever.

Três poemas em prosa de Eduardo Costley-white


                                                                                POESIA

Não sei, poesia, se não fosses de outra alegria muitas poucas vezes eu te quereria e mesmo essa, a que me dás ou a descubro toda em ti, desconheço lá muito bem, não é bem alegria mas qualquer coisa que se pareceria se tivesse eu outra energia.

Não faz sentido nenhum, poesia, que ande por ti indeterminado, que ande magro e alucinado, teimoso e apaixonado, que durma pouco e fume muito, que beba como um desalmado, que sonhe em excesso e acordado, que tenha vozes onde não devia e as oiça ensurdecido, que desvalorize em mim o que tanta gente pretendia, a presunção e a puta da vaidade, que não me apegue ao dinheiro nem ao que ele compraria, não sei, poesia, mas ou estou muito louco ou estou sériamente adoentado.

Não gostar de ti, bom, eu não me importaria, todavia, como gosto, isso é que não está certo, nem é bom, nem é saudável, o que faz de mim esta porcaria e este Eduardo criticado, não tenho outro remédio senão viver em ti enclausurado. Porém, cara poesia, dá-te por contente, pula tu de alegria, que homem falhado está  visto, é este aqui de quem tens gostado e poeta mau e obstinado, é o outro em mim que tens criado.

Portanto, poesia, deixemos assim o que me está destinado, na próxima encarnação se for nascido, nasço livre do libertado.

*

Voltámos à guerra, a lutar contra nós mesmos?
(Vou voltar a repetir-me)

Pensei que nós, os moçambicanos, estavamos cansados de guerra. De morrer, de conviver com o sangue e com a violência. Pensei que tinhamos aprendido a falar. Uns com os outros. A dizer e a escutar. Pensei que havíamos aprendido a resolver os nossos problemas, sentados, calmamente, dialogando. Pensei muitas coisas que, afinal, começo a acabar por descobrir que não tenho pensado nada.

Mas pensei, por exemplo, que ja eramos todos fortes, coesos, que sabíamos ouvir e encorajar os que ainda não o eram e que disso também aprendíamos algumas coisas, com humildade, com sapiência. Afinal, são tantas feridas as que ainda não saramos, tantos os mortos que ainda não enterramos, tantas as lágrimas do passado que nos custam substituir por um sorriso hoje. Assim, julguei do que a história nos ensinara algo havia ficado para recordar que não deveríamos repetir, mas, celebrar: as diferenças e o respeito por elas, a tolerância e a dignidade de exercê-la, a moçambicanidade e o chão que a faz.

Sonhei até, que os meus filhos e os filhos deles pudessem viver construindo o seu País sem que disparassem ou ouvissem, novamente, o tiro de uma única arma. Se levantavam, levantando. Se plantavam, semeando-se. Mas, como eu sou um sonhador, sou, como posso dizer, um irredutível sonhador, eu acreditei no meu sonho. Porque... sonhar nunca fez mal.

Por isso, é que eu pensei que tinhamos aprendido algo. Que nao voltariamos a ter  medo dos canhões em redor das cidades, dos distritos e das aldeias a ensurdecerem-nos para a música, para a ternura, para amizade, para a fraternidade e o amor; Que os beijos lânguidos às nossas namoradas já não voltariam a ser mais uma infracção, mas um dever nosso e um direito delas, agora. Que já não seria preciso bichar para vestir, lavar e perfumar os nossos bébés, nem as nossas adolescentes mulheres se zangariam por, embora serem diferentes, os nossos bébés parecessem iguais nas cores das suas roupinhas.

Eu, vejam lá só, atrevido que sou nesta coisa de sonhar, até vi sonhados os nossos dirigentes sem o culto da arrogância, da prepotência, do nepotismo - aquelas palavras antigas que ouvíamos antigamente nos obrigatórios comícios da nossa escolaridade e que me pareciam estar a voltar de novo. Julguei que aquilo de que nos falavam, daquela coisa muito complicada que nos mandavam fazer , chamada como? – deixa lá eu lembrar... ahhhhh, já sei – crítica e auto-crítica, era hoje o culto deles, a sua terapia preferida. Julguei, ainda, que tinham aprendido a ouvir antes mesmo de falar. Mas só sonhei, mais nada. E sonhar, como disse, não faz mal.

Só que neste trabalho, dormido e despertado, de imaginar coisas, fui acordado de repente, com o pânico a suar no meu angélico sono. Falavam-me os medias de tiros para aqui, tiros para acolá, lojas a arder, carros queimados, crianças a guerrear em vez de brincar, granadas que explodiam, pessoas entricheirando-se, outras fugindo, uma confusão que eu gritei a perguntar: Regressei no tempo? Ao pesadelo dos pesadelos?

Voltámos à guerra, a lutar contra nós mesmos?

Ainda duvidei. Mas da janela das televisoes, tudo se confirmava nos meus desorbitados olhos. Então me entristeci, fui para a cama, chamei a minha companheira e disse-lhe:

- Diz-me que não é verdade. 

Combalidamente chorei, (des)sonhado e desiludido por constatar que nós nos tinhamos esquecido de que, não há muito tempo, nos havíamos ensinado a falar. A pôrmos as armas e as baionetas de lado, o sangue, o ódio, a violência, a inveja, essas coisas todas que sabemos para que pelas estradas do diálogo devamos e possamos encontrar as pontes comuns a nós mesmos. As que nos abraçam, as que nos juntam, as que nos tornam uns mais perto uns dos outros. Porém, é pena que eu só tenha sonhado. Tão simplesmente isso.

Mas, como vou voltar a repetir, sonhar não faz mal. Um dia, um dia tudo será realidade e o País, então e finalmente, se cumprirá.

Eduardo White
(a repetir-se novamente)

*

TENHO DE SER UM HOMEM TODOS DIAS E POETA QUANDO ESCREVO

Tenho que ser homem todos os dias e poeta quando escrevo. Apesar de me pesar o primeiro, dói-me mais o segundo. Hoje é segunda-feira e a vida me chama e duras batalhas me esperam para que as enfrente. Suo, já, de percebê-las tão vivificadas, tão bem nutridas, tão prontas para me fazerem frente. Eu venho débil da poesia e o poeta, cuja insónia tanto me prejudica, nem percebe que necessito de descanso, que preciso desse repouso tão necessário às lutas que hoje pressinto travarei. Escreve desalmadamente como se fossem todas as palavras esgotarem-se, todos os versos abandoná-lo. Chamo por ele, mas nem disso se apercebe. Tenho o corpo cansado, os olhos avermelhados, a cabeça gasta de tanto tê-la emprestada. Entre a correria dos poemas que dele transcrevo, passam-me, tempestivas, as imagens do que tenho por realizar mais daqui a bocado, do que tenho que exercer para comprar cigarros e livros e as coisas necessárias para que a casa seja uma casa e nela possamos habitar-nos. Por outro lado, existe o amor que amamos. A mulher que nos mantém a amizade e nos suporta os maus humores, a desarrumação que fazemos, a preguiça que mostramos para os trabalhos domésticos dos quais nos abstemos. A mulher que amamos é o amor de que não nos furtamos, é essa energia que não pagamos, é esse equilíbrio que tanto necessitamos. Por isso, digo-lhe repetidamente:

Deixa que eu descanse para que possa ganhar o almoço, os livros, o tabaco, o whisky, as flores que temos para oferecer. E ele não me ouve e, por isso, eu bem gostaria de viver à custa dele. Todavia, é de todo impossível essa realidade. Bem que tentámos, mas são tão ruins os versos e são tão poucos os que ainda se leem que logo, logo, desistimos.
Vou eu trabalhar? Pergunto-lhe.

Vai tu, diz-me ele daquele seu ar altivo e daquela pobreza visível que não se lhe esconde. E eu olho-o só, olho-o só porque mais não tenho o que lhe dizer e porque, cá em casa, também, é o único facto que nos resta assim tão encantado. É um bom homem, este nosso poeta. É um pouco desequilibrado, diga-se a verdade, no entanto, é também o nosso amor que me pede para que o deixe ficar, embora lhe pese a idade e o cansaço de não ter pensado naquilo. Este poeta é uma sombra que me persegue, é uma cruz que carrego. Ama quem amo, vive por mim alimentado e ainda lhe registo os filhos que procria na minha cama. Estou cansado. Verdadeiramente cansado. Não dele, que ele é um facto, mas das coisas que escreve, das horas que me rouba e, sobretudo, desse seu modo tresloucado. Não posso dizer basta. Não tento e nem por tentativa ouso. O amor necessita dele, o amor no seu todo, e se o poeta parte, esse infiel escrevinhador embriagado, a vida, aqui, não terá sentido, não será esse fardo que eu e o amor carregamos e que nos faz viver embora seja tão pesado.

Apesar de tudo, hoje o País que parece infeliz, acordou bonito e brilhante e a cheirar a maresia que o mar lhe traz. Olho-o da janela da flat aonde moro, da mesma janela aonde tanta vezes o choro e o celebro e o beijo e há uma luminosidade impregnante em tudo, até nos dois bêbedos que passam a caminho de casa, ou não ou talvez. Mas vão de mãos dadas e cambaleantes e há nisso uma certeza cumpliciada, a de serem felizes, assim, a de estarem tristes se for tal razão esse outro modo de se verem. Vão pela avenida cinzenta e molhada, deserta de muita gente mas habitada de tudo, dos pardais que nela debicam os restos do lixo, das flores sem nome mais abertas ao orvalho e à frescura que sopra como se Deus tivesse a boca aqui. E vão indissimuláveis, cantando, enquanto às janelas dois pais infelizes os invejam a liberdade e a coragem. Vão estonteantemente andando, presos a essa ébria amizade na qual a manhã os casa. Hoje é um dia que até eu que não gosto e estou com a alegria à mesa embora me pese aqueles meninos na rua ao lado, esses filhos da falsa burguesia cujo destino seria a miséria mas o País não quis, que o sujam com a sua arrogância e com o pó que os seus carros levantam nos peões que dão e que a soruma faz. Estou com a alegria à mesa, dizia, e com ela converso e troco carinhos, porque, decerto, o dia terá um encanto mágico mesmo que alguns médicos que sempre estiveram em greve, no meu País, na ética a que faltam, na arrogância branca das suas batas, o demonstrem agora mais nitidamente e não se importem com os doentes que morrem, com as crianças que não terão direito a exercer os homens que serão amanhã, porque a greve é que está com saúde e elas não, como sempre, porque nunca a tiveram, mas o dia é mágico, torno a dizer, e é um dia bonito. Especial, hoje, porque não sei bem porquê, ou saberei mas ainda não percebi. Um dia que espero o amor prevaleça em tudo que ele tocar e seja dito e seja feito e seja exercido como se o País se fosse renovar, nas maternidades, nas fábricas que não param, nas padarias, nos transportes públicos, nos restaurantes, nas barracas, nas igrejas, nos cinemas, em todos aqueles lugares onde hajam homens e mulheres para quem este dia é um dia de trabalho e nós podemos passá-lo felizes e sem, injustamente, os lembrar. Bom dia a esses amigos e cidadãos e compatriotas, obrigado por esse dia fluminoso e obrigado a vocês, aí, e que hoje vos brilhe a alma como brilhará, certamente, o dia.





[1] Escritor moçambicano, Eduardo Costley-white nasceu em Quelimane (Moçambique), a 21 de novembro de 1963. Após uma formação durante três anos no Instituto Industrial, o escritor exerceu funções diretivas numa empresa comercial, foi membro do Conselho de Coordenação da revista "Charrua" e dirigente da Associação de Escritores de Moçambique. Apresenta colaboração em imprensa lusófona e várias publicações como Amar sobre o Índico (1984), País de Mim (1990), Poemas da Ciências de Voar e da Engenharia de Ser Ave (1992), Dormir com Deus e um Navio na Língua (2001), As Falas do Escorpião (2002), entre outros. Recebeu vários prémios literários e foi considerado, em 2001, pela Associação de Imprensa Moçambicana, a Figura Literária do ano. Numa preocupação com as origens, Eduardo Costley-white tenta na sua poesia refletir sobre a sua história e sobre Moçambique, numa tentativa de apagar as marcas da guerra e de dignificar a vida humana. Para isso, escreve através de um amor diversificado que pode ser pela amada, pela terra ou mesmo pela própria poesia, sempre num tom de ternura, de onirismo, de musicalidade e, por vezes, de erotismo. Ver em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_White


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